- Devo dizer-te uma coisa que vai talvez contrariar-te...
Apoiado no cotovelo, ele interrogou-a com o olhar. Ela era inteligente e corajosa, mas por vezes desastrada.
- Acabei por ter relações com Lenglen, esta tarde.
Ele encolheu os ombros, como para dizer: “Isso é contigo”. Mas o gesto, a expressão fechada do seu rosto, condiziam mal com esta indiferença. Ela olhava-o, extenuada, com as maçãs do rosto acentuadas pela luz vertical. Também ele olhava os seus olhos sem visão, na sombra, e nada dizia. Perguntava a si próprio se a expressão de sensualidade do rosto dela não viria daquilo que os seus olhos rasos de água e a ligeira tumidez dos lábios acentuavam com violência, por contraste com os seus traços, a feminilidade... Ela sentou-se na cama, pegou-lhe na mão. Ele quis retirá-la, mas deixou-a. Ela sentiu no entanto o movimento dele:
- Isto magoa-te?
- Disse-te que eras livre... Não me peças mais - disse ele, com amargura.
O cãozinho saltou para a cama. Ele retirou a mão, para o acariciar talvez.
- És livre - repetiu. - Pouco importa o resto.
- Enfim, eu devia dizer-te. Até por mim.
- Sim.
Que ela tivesse de lho dizer não era dúvida, nem para um nem para outro. Ele quis subitamente levantar-se: assim deitado, ela sentada na sua cama, como um doente velado por ela... Mas para quê? Tudo era tão completamente vão... Continuava contudo a olhá-la, a descobrir que ela podia fazê-lo sofrer, mas que, havia meses, olhasse-a ou não, não a via já; algumas expressões, por vezes... Aquele amor muitas vezes inquieto que os unia como uma criança doente, aquele sentido comum da vida e da morte de ambos, aquele entendimento carnal entre eles, nada disto existia em face da fatalidade que desvanece as formas de que os nossos olhares estão saturados. “Amá-la-ei menos do que julgo?”, pensou ele. Não. Mesmo neste momento, tinha a certeza de que, se ela morresse, ele não mais serviria a causa com esperança, mas com desespero, como se ele próprio fosse um morto. Nada, contudo, prevalecia contra o desbotar deste rosto enterrado no fundo da vida comum como em bruma, como na terra. Lembrou-se de um amigo que vira morrer a inteligência da mulher que amava, paralítica durante meses; parecia-lhe ver morrer May também, ver desaparecer absurdamente, como uma nuvem que se desfaz no céu pardo, a forma da sua felicidade. Como se ela morresse duas vezes: do tempo, e do que lhe dizia.
em «A Condição Humana», André Malraux
sábado, dezembro 27, 2008
Isso é contigo
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1 comentário:
Belo texto,e bem lembrado, Hugo!
Deixo os votos de um excelente Novo Ano e uma sugestão/provocação de leitura: «Exterminem Todas as Bestas» ;))))
Beijinhos
Teresa
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