- Kyo, vou dizer-te qualquer coisa de singular, e que no entanto é verdade. Até há cinco minutos, eu julgava que te seria indiferente. Talvez me conviesse julgá-lo... Há apelos, principalmente quando se está perto da morte... (é à dos outros que eu estou habituada, Kyo...) que nada têm que ver com o amor...
Contudo, o ciúme existia, tanto mais perturbante quanto o desejo sexual que ela lhe inspirava repousava na ternura. Com os olhos fechados, sempre apoiado no cotovelo, ele tentava (triste ocupação) compreender. Ouvia apenas a respiração opressa de May, e o raspar das patas do cãozinho. A sua dor provinha, em primeiro lugar (haveria, ah!, seguidos: sentia-os emboscados em si mesmos como os seus camaradas por detrás das portas ainda fechadas) de atribuir ao homem que acabara de ter relações com May (Não consigo, no entanto, chamar-lhe o seu amante) desprezo por ela. Era um dos antigos camaradas de May, mal o conhecia. Mas conhecia a misoginia fundamental de quase todos os homens. “A ideia que, tendo dormido com ela, porque dormiu com ela, pode pensar dela: “Aquela pegazita”, dá-me vontade de o espancar. Não seremos nunca ciumentos se não do que supomos que outrem supõe? Triste humanidade...”. Para May a sexualidade não a obrigava a nada. Era necessário que o tipo o soubesse. Que dormisse com ela, vá, mas não imaginasse que a possuía. “Estou a tornar-me pungente...” Mas nada podia, e não estava aí o essencial, sabia-o. O essencial, o que o perturbava até a angústia, era que de repente se separara dela, não pela raiva (ainda que houvesse raiva nele), não pelo ciúme (ou então seria o ciúme exactamente isso?); por um sentimento sem nome, tão destruidor como o tempo ou a morte: não a reencontrava. Reabrira os olhos: que ser humano era aquele corpo desportivo e familiar, aquele perfil perdido: os olhos grandes, partindo das têmporas, mergulhados entre a testa ampla e as maçãs do rosto? Aquela que acabara de ter relações? Mas não era também aquela que suportava as suas fraquezas, as suas dores, as suas irritações, aquela que tratara com ele os seus camaradas feridos, velara com ele os seus amigos mortos... A doçura da sua voz, ainda no ar... Não se esquece o que se quer. No entanto, aquele corpo retomava o mistério doloroso do ser conhecido transformado de repente... do mudo, do cego, do doido. E era uma mulher. Não uma espécie de homem. Outra coisa...
Ela escapava-lhe completamente. E, por causa disso talvez, o apelo furioso de um contacto intenso com ela o cegava, fosse qual fosse, pavor, gritos, pancadas. Levantou-se, aproximou-se dela. Sabia que estava num estado de crise, que no dia seguinte talvez já não compreendesse nada do que sentia, mas estava na frente dela como de uma agonia; como para uma agonia o instinto impelia-o para ela: tocar, apalpar, agarrar os que nos deixam, colarmo-nos a eles... Com que angustia ela o olhava, parado a dois passos dela... A revelação do que queria tombou por fim sobre ele; deitar-se com ela, refugiar-se contra a vertigem na qual a perdia inteira; não precisavam de se conhecer quando empregavam todas as forças em apertar os braços nos corpos.
em «A Condição Humana», André Malraux
domingo, dezembro 28, 2008
Eu julgava que te seria indiferente
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Enviar um comentário