sábado, outubro 29, 2011

não aturo mais isto #4/4

E insistiu em examiná-la, com manifesta vontade de rir. E com razão. Pois a pseudofada parecia...Parecia, não. Era...Era mesmo um homem vestido de mulher, como se deduzia no desarrumo da cabeleira postiça à banda, no negror evidente da barba mal disfarçada por várias camadas de pó-de-arroz, além da maneira canhestra e hirta de andar e da falta daqueles mil e um adenames femininos tão difíceis de imitar pelos homens. O jeito de pentear o cabelo com os dedos, por exemplo.
Embora não desejasse humilhá-lo, João Sem Medo não evitou um incondescendente riso de chacota.
- Que queres filho? - explicou a fada falsificada, vexadíssima, a tropeçar na túnica. - Quando telefonaram para a repartição da 3ª Mágica a requisitar uma funcionária, só me encontrava lá eu, que sou contínuo, e uma fada muito velhinha, muito perra, entrevada de reumatismo e com mais de 50.000 anos de serviço activo, quase na idade da reforma por inteiro, coitadinha! E então, por uma questão de prestígio, ofereci-me para esta fantochada. Nem quero pensar no que diria o Mago-Mor se não mandássemos uma fada válida para os Dois Caminhos. Pregava-nos uma descompostura tremenda. Foi por isso que me mascarei e vim...Não julgues, porém, que não percebo de artes mágicas!
E estadeou cheio de soberba vaidosa:
- Aqui, onde me vês, transformo com um piparote homens em ratos. Até deito flores pela boca. E sapinhos...Queres ver?
- Não, não - interrompeu João Sem Medo.
- Acredito. Embora não entenda porque, sabendo tu tanto de artes mágicas, não te transfiguraste logo em mulher em vez de recorrer a esses ridículos caracóis postiços.
- Porque, segundo a regra primeira da Constituição Secreta do Mundo, só as aparências são susceptíveis de mudança e nunca o que existe de mais profundo nos seres. O sexo, por exemplo. Por mais que isso te espante, ser-me-ia fácil transformar em rato, mas nunca em rata.
- Bem, bem. Deixa-te de lérias - impacientou-se João Sem Medo. - E, já agora, toma a sério o teu papel de fada e aconselha-me qual dos caminhos devo seguir: o asfaltado ou o dos pedregulhos?
- Olha, menino - elucidou o contínuo, de roca debaixo do sovaco, a aconchegar a cabeleira para esconder melhor o luzidio da careca -, o bom caminho conduz à Felicidade. E, o mau, à infelicidade...

em «As Aventuras de João Sem Medo», José Gomes Ferreira

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