domingo, outubro 16, 2011

não aturo mais isto #3/4

E, após quilómetros de marcha sonâmbula aos pontapés às pedras e aos arbustos para não adormecer, acabou por desembocar numa vasta clareira batida pelo sol, onde se deteve, os olhos ofuscados pela luz súbita.
Quando os reabriu, verificou com um sorriso de compreensão irónica que da clareira partiam dois caminhos, os dois caminhos clássicos de todas as histórias de encantos e prodígios: um asfaltado, cómodo, ladeado de amendoeiras em flor; o outro, pedregoso e eriçado de espinhos, urtigas e urzes.
- Bem - pensou. - Cá estão os dois caminhos fatais: o do Bem e o do Mal. (Como se houvesse caminhos nítidos do Bem e do Mal!). Já esperava por eles. Agora, para completar a comédia, falta apenas a respectiva fada...Uma fada a valer, de varinha de condão, que regule o trânsito à laia de polícia sinaleiro. Lá sem fada é que eu não passo.
E pôs-se de novo aos gritos de troça:
- Eh! Fada dos Bosques! Aparece, rica fada da minh’alma.
Então - ó pasmo dos pasmos! - João Sem Medo viu sair da espessura da floresta um ser prodigioso que de longe parecia uma mulher jovem e bela, cabelo loiro até à cintura, três estrelas de prata na testa, varinha na mão direita, roca na mão esquerda, túnica bordada de rubis e esmeraldas, chapinsdellatina e tudo o mais que as fadas costumam usar nos bailes de Entrudo.
No primeiro momento contemplou-a, deslumbrado. Mas, à medida que a observava mais de perto, o sorriso inicial desfez-se pouco a pouco em caretas de desconfiança.
- És a fada dos Dois Caminhos? - inquiriu duvidoso. - Palavra? Mostra cá o bilhete de identidade.
- Não acreditas? - protestou, para desviar a conversa, a hipotética fada com voz aflautada, voz de máscara aos guinchos. - Sim, sou a Fada Infalível, a Fada Lugar-Comum...
- Acredito, acredito... - concordou o rapaz por zombaria complacente.

em «As Aventuras de João Sem Medo», José Gomes Ferreira

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