quarta-feira, abril 22, 2009

Soeiro, 100 anos

Dois dias depois, quando o chefe da Polícia e dois agentes, munidos de chicotes, entraram na sala, Paulo amparava-se às paredes para se suster de pé. As pernas, inchadas, eram como dois trambolhos, as pisaduras negras em volta dos olhos mostravam a febre que o atormentava.
- Olá, tens passado bem? - casquinou o chefe. - Decerto já queres fazer declarações.
- Sim, quero.
- Ora, ainda bem - continuou aquele, esfregando as mãos. - À Gestapo portuguesa ninguém resiste...
O jovem desencostou-se da parede; oscilou um pouco, mas susteve-se.
- Sim, quero fazer declarações definitivas - repetiu, e tomou fôlego. Da cara tinham-se-lhe esbatido os vincos de sofrimento; só os olhos dominavam. - Sou comunista. Amo o meu partido e amo a minha pátria, que só poderá ser grande se o seu povo for livre. Eu luto e lutarei por essa liberdade...
A um sinal do chefe, os dois agentes não o deixaram continuar. Deitado no chão por uma chicotada, com a cara cortada de lado a lado, ficou a escabujar sob os golpes ininterruptos dos agentes, a resguardar a cabeça no casaco, como se este pudesse couraçá-lo. Já o sangue escorria das roupas para o chão e os agentes pareciam enojados, ainda o chefe gozava a cena, com sádica expressão. Por fim, quando Paulo quase não reagia às chicotadas, aquele levantou-lhe a cabeça e gritou:
- Fala, sacana!
- Não trairei...nem que... - começou Paulo a dizer.
Mas o polícia atirou-lhe um soco à boca, que lhe fez saltar os dentes da frente, de mistura com sangue e gemidos de dor.
O jovem caiu para trás. Dos seus lábios já não podiam soltar-se mais palavras. Mas os olhos, muito abertos, e os punhos cerrados, diziam por ele:
- Nem que me matem!

excerto de «Mais um Herói» (Contos Vermelhos), Soeiro Pereira Gomes

Soeiro Pereira Gomes foi um intelectual, escritor, resistente antifascista e dirigente do Partido Comunista Português. Soeiro passa à clandestinidade em 1945 para evitar a repressão do Estado Novo e continua a sua actividade militante. Acabará por adoecer com tuberculose e por morrer prematuramente, aos 40 anos, com ao agravamento da doença devido às dificuldades da vida clandestina.

Soeiro é um dos grandes nomes do neo-realismo em Portugal. O PCP por ocasião do centenário do seu nascimento elaborou uma exposição que retrata a sua vida obra. A exposição está disponível em PDF aqui.

1 comentário:

Teresa disse...

«Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada com cães. Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido, mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro — nunca sairá um escravo.»

Mário Cesariny